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Mikrokosmos

O lápis dançava sobre o papel de forma calma e fluída, os traços negros quase perfeitos maculando a página branca. Gina mordia a parte interna da bochecha, concentrada em seu trabalho, receosa que se demorasse mais para colocar suas ideias no papel elas evaporariam de sua mente.

“Os cabelos dele devem ser castanhos, escuros como chocolate amargo”, ela falara para Thiago mais cedo naquela semana, quando o amigo o ligou à noite para perguntar sobre seu novo projeto da faculdade, e Gina desandara a falar sobre como imaginava seu protagonista.

“Os olhos intensos como uma galáxia infinda, mas doces como mel”, disse sorrindo, seu professor havia desafiado-os a criar um capítulo inteiro de mangá e o melhor seria escolhido para a exposição da faculdade no final do semestre, onde sempre havia olheiros de editoras e outros quadrinistas presentes.

“Ele também deve ser musculoso, alto e forte para proteger aqueles que ama”, revelou quando o outro perguntara sobre seu físico, as ideias sendo anotadas mentalmente enquanto o maior apenas sorria do outro lado da linha.

“Mas no fundo ele deve ser inocente, como uma criança descobrindo o mundo pela primeira vez”, continuou, um sorriso doce em seus lábios enquanto imaginava tudo isso. Thiago perguntou-a se aquele não seria seu tipo ideal perfeito, o homem que sempre sonhou para si mesma. Gina suspirou, não sabendo com certeza como responder. Talvez fosse mesmo.

A quadrinista pousou seu lápis ao seu lado, admirando de vários ângulos o resultado final de seu trabalho e sorrindo quando seu coração se aqueceu ao ficar mais que contente com ele, poderia se apaixonar por seu próprio desenho. Que bobagem, pensou, não existem caras perfeitos e pessoas dos sonhos na realidade como existiam nos quadrinhos. Triste.

Começou a guardar suas coisas para ir embora, seu caderno seguro contra seu peito como o objeto mais importante de sua vida, quando uma grande sombra surgiu acima de si. A morena olhou rapidamente para cima para identificar o que era e arrependeu-se na mesma hora.

— Ora, ora, ora — o outro rapaz falou, o tom debochado pingando de sua boca enquanto dirigia-se a seus colegas — Se não é uma das otakus fedidinhas de artes — riu, os dois atrás dele acompanhando-o.

Gina engoliu em seco.

— O que pensa que está fazendo aqui? Não sabe que essa mesa é do capitão do time de basquete, vulgo eu? — questionou, cruzando os braços para flexionar os músculos e intimidar ainda mais o menor.

A Williams arrumou os óculos em seu rosto, olhando para baixo enquanto pensava no que fazer.

— O jardim é público, Johnny. As mesas não têm dono — falou em um fio de voz, quase inaudível.

O maior riu debochado como tudo o que fizera até o momento.

— Gente, ouviram isso? Acho que escutei um ratinho falando — gargalhou maligno com seus amigos, antes de parar subitamente e seu olhar ganhar uma sombra amedrontadora — Escuta aqui, pingo de gente — ele enfiou um de seus longos dedos no peito de Gina, fazendo-a soltar um gemido de dor — Quer mesmo comprar briga com a gente? Eu teria mais cuidado se fosse você — terminou, empurrando a outra, que caiu para trás na grama com seu caderno para um lado e os óculos para outro.

Os bullies começaram a rir novamente, principalmente quando viram o desespero do aluno de artes em achar as lentes que o permitiam enxerga. De repente, entretanto, os três calaram-se imediatamente por algum motivo. Gina não conseguia identificar com clareza o que estava acontecendo, mas sabia que uma quarta pessoa havia se juntado à cena quando ouviu uma voz diferente.

— Já chega, Johnny — a nova pessoa, um garoto pelo visto, falou autoritário e por incrível que pareça os jogadores não o retrucaram — O pátio não é sua propriedade, as pessoas têm o direito de ir e vir — som de passos, o rapaz chegava mais perto do capitão — E se eu fosse você eu acataria o “ir” agora — falou entredentes, ameaçador.

Era quase audível o barulho de seus pomos de adão se mexendo, de qualquer forma, eles não poderiam sair sem um último comentário cínico.

— À vontade, eu já havia perdido a vontade de sentar aí mesmo — o maior de todos eles falou, antes de virar as costas e sair com os outros dois flanqueando-o — Isso não acabou — escutaram-no murmurar.

O novo rapaz revirou os olhos com a atitude, cansado de sempre ter de lidar com isso, antes de voltar-se à desenhista no chão, prontamente ajoelhando-o para ajudá-la.

— Tudo bem? — perguntou, vendo o pânico instaurado em sua face.

— Meus óculos — Gina choramingou — Não consigo achá-los. Não enxergo sem eles.

A próxima coisa que a Williams sentiu foi o calor de duas mãos cuidadosamente ajeitando algo em seu rosto, seus óculos. Sua visão focou-se quando olhou através das lentes e se já não estivesse no chão Gina teria que se segurar para não cair para trás.

À sua frente, sorrindo docilmente, estava a forma viva de seu personagem. Bem, pelo menos, alguém extremamente parecido com ele. A desenhista se segurou para não esticar a mão e tocá-lo para provar que era real. Não havia como seu desenho ter saltado das páginas de seu caderno, mas era quase inacreditável o quanto os dois eram idênticos.

O rapaz em sua frente franziu o cenho, mudando a expressão para uma mais séria, de confusão, e só então Gina percebeu que ele estendia uma mão para si, e deveria estar fazendo-o há muito tempo. Ela sacudiu a cabeça para acordar melhor de seu choque e aceitou, levantando-se com a ajuda do outro antes de recolher suas coisas do chão logo em seguida.

— Obrigada... por me ajudar — disse tímida, as maçãs do rosto rubras.

O outro sorriu novamente.

— Não há de quê, aqueles caras são um pé no saco, é sempre divertido vê-los colocar o rabo entre as pernas — riu sutilmente, antes de virar-se novamente para a garota — Qual é seu nome?

— Gina. Gina Williams, sexto semestre de artes visuais, departamento de mangás e quadrinhos — respondeu, ainda sem olhar diretamente no rosto do outro, temia acabar não conseguindo desviar os olhos se o fizesse.

— Sexto semestre? Você é minha veterana, então — o maior comentou, sorrindo — Meu nome é Kyan Frazier — apresentou-se, porém, antes de falar qualquer outra coisa, os dois ouviram o sinal alto do início das aulas soando, alertando-os — Oh, gostaria de conversar mais, mas parece que não temos tempo. Volta bem sozinha? — perguntou, referindo-se à sua sala. Gina assentiu — Muito bem. Foi um prazer conhecê-la, Srta. Gina, espero encontrá-la novamente — concluiu, enfiando as mãos geladas pelo frio nos bolsos de sua jaqueta.

“Digo o mesmo”, Gina queria falar, mas quando levantou a cabeça para olhá-lo pela única vez viu o quanto aquilo foi um erro. Kyan sorria enquanto virava-se para voltar a seu próprio prédio, seus cabelos um pouco ondulados pela umidade e os olhos... Gina perdeu-se neles por um momento, como em um buraco negro.

Ela fez uma nota mental de adicionar uma pequena pintinha em seu personagem quando voltasse, abaixo do lábio inferior cheinho.

*****

A Williams assustou-se quando sentiu alguém se sentar ao seu lado e deslizar para perto de si. Olhou rapidamente para sua direita para ver quem era, apenas para que acontecesse novamente do lado esquerdo. Colocou as mãos sobre o coração, suspirando quando reconheceu suas duas colegas de turma.

— Então, o que aconteceu lá fora? — Lisa perguntou, as mãos apoiadas sob o queixo na mesa e os olhos brilhando em curiosidade.

— Do que está falando? — a menor perguntou, surpresa.

— Não se faça de sonsa, Ginie — dessa vez quem falou foi Maya, uma aluna de intercâmbio do Japão — A confusão com o Johnny e os androides dele e o Kyan.

Gina arregalou os olhos, como eles sabiam disso? Mas, de novo, Lisa Harris e Maya Ittoki não eram considerados as fontes de informação da sala por qualquer motivo. As duas colegas podiam abrir seu próprio negócio somente com as fofocas que ouviam.

A morena suspirou e contou brevemente o que havia acontecido, mesmo sabendo que talvez estivesse no Twitter da faculdade dali há alguns minutos. As duas ouviam atentamente e arregalaram os olhos quando terminou, Lisa sendo a primeira a falar.

— Entendo. É uma pena aqueles três serem tão bonitos, mas tão imbecis — suspirou, como se estivesse decepcionada — Foi muita sorte o Kyan estar por perto, mas acho que nunca vi ele intervir em nossos assuntos — revelou, afinal não era a primeira vez que os jogadores implicavam com o pessoal de artes.

Gina franziu o cenho.

— Vocês o conhecem? — perguntou inocentemente.

— Estou surpresa de você não conhecer, basicamente todo mundo na faculdade sabe sobre ele — Maya falou, continuando quando viu a cara confusa do menor — Kyan Frazier é conhecido nas bocadas como o delinquente do campus. Já arrumou briga várias vezes com diversas pessoas diferentes e o resultado nunca é bom.

— Para ele? — questionou.

— Para elas. O cara é basicamente campeão regional de boxe, você não gostaria de se meter com ele — alertou, sério.

— Ficamos felizes por ele ter te ajudado, Ginie, mas eu tomaria cuidado com ele de qualquer jeito. Não queremos que se machuque — disse a Harris e Gina podia ver a sinceridade em sua voz.

As duas retornaram a seus respectivos lugares quando o professor entrou na sala, mas a Williams continuou pensativa, olhando para o desenho que havia feito mais cedo. Será?

*****

Estava mais frio do que Gina esperava quando saiu do prédio de artes ao final da aula e ela enrolou seu cachecol mais forte ao redor de seu rosto e pescoço, quase fazendo-a não ver o garoto à sua frente, assustando-a (sinceramente, Gina estava um pouco cansada de todos os sustos daquele dia e só queria ir para casa).

Ela abaixou um pouco a peça de lã e olhou curiosa para Kyan, que se encontrava encostado em uma pilastra ao lado do portão.

— Kyan? — chamou suavemente, esperando que o outro pudesse ouvir sua voz rouca através do vento gelado.

O mais alto virou-se para si.

— Estava esperando por você — admitiu, virando o corpo totalmente para a mais velha.

Gina olhou-o ainda mais aturdida, apontando para si mesma como se dissesse “por mim?”.

Kyan baixou o tronco, aproximando-se de si até que ficasse à altura de seu ouvido para sussurrar.

— Seja discreto ao olhar, mas Johnny, Casper e Jeffrey estão olhando para cá — revelou.

A garota olhou brevemente para a direção apontada e viu que, realmente, o trio de mais cedo olhava enigmático para aquele ponto e Gina engoliu em seco. Eles ficariam perseguindo-a agora?

Virou novamente para Kyan, que percebeu sua expressão assustada.

— Venha — ordenou autoritário, e Gina seguiu-o para fora do campus e para longe do trio — Você mora longe? — o maior questionou.

Gina negou.

— Há algumas quadras daqui, no complexo estudantil — falou, tentando sincronizar seus passos com os dele.

Kyan apenas o seguiu em silêncio, as mãos enfiadas dentro do casaco como naquela manhã. Aquilo lhe dava um ar intimidador e a Williams aproveitou o longo silêncio entre eles para admirar melhor o outro.

Era exatamente como em sua mente, Kyan era alto e seus músculos se destacavam embaixo da jaqueta. Seu olhar felino podia colocar medo até em leões, mas lembrava-se de quando sorrira para si, doce, cálido e com um brilho infantil. Era coincidência demais, parecia até mesmo com o dorama que assistira em que o personagem dos quadrinhos da garota ganhava vida, mas ela sabia que Kyan era uma pessoa real, afinal era um aluno da universidade conhecido por vários.

Perguntava-se em que curso estava. Maya havia dito que ele fazia boxe, então algo relacionado à esportes? Ou outra coisa física?

— Não tivemos muito tempo para conversar àquela hora, não é? — o outro interrompeu sua linha de pensamentos, continuando sem olhar para si — Quer perguntar alguma coisa?

— Em que curso está, Kyan? — vocalizou sua pergunta de mais cedo.

Os dois pararam em um semáforo, olhando para os lados antes de atravessas a faixa e o Frazier responder.

— Literatura.

A garota arregalou os olhos, de todas as opções possíveis que passaram por sua cabeça aquela não chegava nem perto.

Kyan olhou para si e sorriu vendo sua face espantada.

— Eu sempre gostei de ler e criar minhas próprias histórias, desde pequeno. Meus pais ficaram preocupados com minha escolha, é claro, mas eu sei que escolhi o caminho certo para mim — explicou, sincero — Não era o que estava imaginando, não é?

— Bem, realmente não era minha primeira opção, principalmente com sua reputação — foi franca, mas arrependeu-se imediatamente quando olhou para o outro e viu seu rosto fechar-se — Desculpe, não foi...

— Acredita nos boatos? — Kyan cortou-o, cabisbaixo.

Gina ficou pensativa por um momento. Lisa e Maya geralmente estavam certas em suas informações, mas, de novo, fofocas nunca são uma coisa boa e boatos são apenas informações de uma história que já rodou por muitos.

Não, ela não acreditaria sem provas, os olhos de Kyan diziam-na que ele não era mau.

— Eu não te conheço bem para saber se o que dizem é verdade — começou, sendo sincera novamente — Mas eu também sei que boatos na maioria das vezes são mentiras. Então, acho que é você que tem de me dizer isso, Kyan.

Demorou quase um minuto, porém os lábios do Frazier curvaram-se levemente em um sorriso, uma faísca de esperança parecia dançar em sua alma.

Eles aproximavam-se do prédio de Gina a esse ponto, mas o maior falou do mesmo jeito.

— Sabe por que comecei o boxe, Srta. Gina? — a Williams negou com a cabeça — Porque estava cansado de esperar alguém se levantar por mim. Eu percebi que se quisesse seguir em frente eu deveria ser meu próprio herói. E eu sei que você tem esse potencial também — admitiu, olhando para a garota, que nem percebeu quando pararam em frente ao dormitório — Bem, está entregue.

Gina assentiu levemente e subiu um degrau da escada que levava à entrada para ficar da mesma altura que o outro.

— Obrigada, Kyan, por tudo — agradeceu, envergonhada.

Kyan apenas sorriu para si, novamente, um sorriso de dentes brancos e avantajados como um coelhinho.

— Sem problemas. Te vejo por aí, veterana.

“Ele deve ter um sorriso inocente como um coelho”, foi a primeira coisa que escreveu quando chegou em casa.

*****

Na semana seguinte e nas outras, Kyan acompanhou-a até em casa todos os dias. No começo, era mais por precaução, medo do que o trio dos babacas poderia fazer com a menina se a deixasse só. Entretanto, ambos descobriram que gostavam muito da companhia um do outro, sua relação estreitando-se a cada vez que se encontravam. Gina mostrava seus novos desenhos e falava sobre música com Kyan. O Frazier recitava poemas que havia escrito na aula e conversava sobre histórias com a Williams. Os dois eram como fogo e água, mas se encaixavam tão bem.

Na primeira vez em que Kyan entrou de fato no apartamento de Gina, sua colega de quarto, Helen, estava lá e eles acabaram em uma competição boba de quem fazia a pior pontuação no Just Dance. Na segunda, os dois estavam sozinhos e criaram uma história hilária sobre um pinguim criado por dinossauros que participava de um clube de dança, Gina fazendo ilustrações dignas de uma criança de 10 anos e Kyan diligentemente ditando as falas.

— Nada mal, nada mal — a garota começou depois que os dois começaram a acalmar-se de sua crise de risos — Talvez quando eu for uma quadrinista famosa você pode ser meu roteirista.

O mais novo riu com a afirmação, mas não pôde deixar de guardar a ideia com carinho em seu coração.

— Eu me sentiria honrado.

E assim dois completos estranhos começavam a ter uma bela amizade e um doce sentimento aflorava-se no peito de ambos.

*****

Gina estranhou quando viu Kyan chegando tão cedo na universidade aquela manhã. O mais novo tinha o mau hábito de esperar até o último segundo para então sair correndo de casa e quase chegar atrasado toda vez. Naquele dia, entretanto, viu-o se aproximar quase meia hora antes do primeiro sinal tocar.

A Williams estava sentada em um banco abaixo de uma árvore, um local em que os dois haviam habituado-se a encontrar, mas agora começava a exibir uma fina camada de gelo pela neve que ia e vinha. Kyan provavelmente iria lhe dar uma bronca por estar ali naquele horário e correr o risco de pegar uma hipotermia, mas Gina não podia evitar, sua inspiração sempre vinha com mais força ao ar livre.

O maior se aproximou e sentou-se ao seu lado no banco, sorrindo enquanto desejava bom dia à mais velha. Gina retribuiu-o, brincando sobre como deveria ter caído da cama naquele dia para ter chegado na hora certa, porém, diferente de todas as outras vezes, o Frazier não riu consigo.

Okay, algo definitivamente estava errado e a Williams iria descobrir o que era.

— Kyan? Está tudo bem? — perguntou cauteloso, o lápis parando de se mover para poder olhar no rosto cabisbaixo do mais novo, que não respondeu — O que aconteceu? Sabe que pode me contar qualquer coisa, não é? — continuou tentando persuadi-lo a falar.

Kyan, entretanto, permaneceu em silêncio e olhou para as mãos, como se não soubesse exatamente o que dizer, o que era estranho para o estudante de literatura que sempre tinha as palavras a seu favor.

Gina resolveu tentar outra abordagem, então.

— Olha, — começou, deslizando uma mão por seu braço até chegar na sua, acariciando-a — por que você não espera aqui eu buscar um café para nós dois pra nos esquentar e aí você me diz se quiser o que aconteceu? — sugeriu, passando o polegar pelas costas de sua mão.

Pela primeira vez no dia Kyan sorriu, e Gina retribuiu-o antes de levantar-se e sair com um “já volto”, deixando-o sozinho no banco apenas com seu caderno de companhia.

O caderno de Gina. A garota já havia mostrado outros para si, mas aquele em específico, o que estava sempre carregando, ainda era um mistério. Gina não gostava de mostrar seus trabalhos não concluídos enquanto não estivesse 100% satisfeita com o rumo que queria para eles e o mais novo respeitava sua privacidade. Porém, naquela hora, a curiosidade de Kyan falou mais alto e ele arriscou olhar no que a desenhista estava trabalhando.

Seus olhos arregalaram-se quando pousaram nas primeiras páginas do quadrinho em andamento, entretanto. A história era sobre dois garotos que passaram por términos difíceis e acabaram se encontrando, aparentemente. Um deles tinha cabelos rosa, era pequeno e fofo e lembrava-o um pouco de Gina. O outro, no entanto, era... exatamente igual a si mesmo.

Kyan franziu as sobrancelhas, não entendendo absolutamente nada do que estava acontecendo. O personagem igual a si parecia ter sido traído pela ex, mas as falas dele, o jeito que se comportava, até mesmo as conversas com o personagem de cabelos rosa... eram coisas que Kyan via a si mesmo dizendo, agindo ou já tinha até mesmo falado para Gina.

Sua expressão fechou-se novamente quando o viu voltando, mas dessa vez seu olhar não tinha mais o brilho inocente de sempre, era escuro.

— Kyan? — a Williams chamou-o, assim que percebeu seu semblante apático e incomum — Está tudo b-

— Foi divertido pra você? — interrompeu-a, fazendo Gina recuar um passo em surpresa — Foi divertido brincar comigo? — o mais novo continuou, a cabeça ainda baixa e os olhos não encontrando os da outra.

— Do que está falando? — a garota indagou, completamente aturdida, até ver o objeto nas mãos do Frazier — Olhou minhas coisas?

— Estava me usando esse tempo todo? — ignorou a pergunta da mais velha, levantando o caderno para mostrá-la — Me usou pra ter conteúdo pra porcaria da sua história?

Gina começava a entender tudo, finalmente, mas o que Kyan não sabia é que ela nunca havia feito tudo aquilo com más intenções e precisava fazer o maior entender isso.

— Kyan, não, isso é tudo um mal entendido! Eu nunca... — tentou.

Kyan levantou a cabeça pela primeira vez desde que voltou e a visão que teve, os olhos marejados e a boca tremendo, foi pior do que imaginava que seria.

— Quer saber? Esquece — o Frazier levantou-se de supetão, assustando a menina, e jogou o caderno fechado de volta no banco. Antes de partir, entretanto, ele parou de frente para Gina, olhando para os próprios pés ao invés da mais velha — Por um momento eu realmente achei...

Ele não terminou, girando em seus calcanhares e rumando para longe com as mãos dentro do moletom, como sempre.

Gina não foi atrás dele.

*****

Fazia três dias que Kyan não aparecia na universidade. Gina achou que ele estivesse evitando-a no começo, mas depois que o esperou fora de sua sala por mais de uma hora apenas para uma colega sua aparecer dizendo que ele havia faltado naquele dia e no anterior, a Williams teve certeza de que havia algo errado.

Então, ali estava ela novamente, em direção à sala do estudante de literatura para encontrar-se com o representante da turma, que segundo o que lhe disseram era o último a sair sempre. Finalmente, um rapaz alto de pele amorenada e óculos de grau passou pela porta e Gina correu atrás dele imediatamente.

— Com licença, Theo Jones? — chamou, fazendo o outro virar para trás — Você é Theo Jones, não é? — perguntou, a voz baixa em timidez.

— Sim, sou eu — confirmou, virando-se totalmente para a garota — Posso ajudá-la?

— Eu sou Gina, sou amiga do Kyan — sentiu-se estranha em falar aquilo, nunca haviam rotulado sua relação antes, mas continuou — Soube que ele não vem há dias e queria saber se está tudo bem, mas não sei onde ele mora. Você sabe?

Theo foi super doce consigo, sorrindo durante todo o tempo em que conversaram e sendo completamente atencioso. Gina podia ver por que ele era o representante de turma, era quase impossível não se apaixonar apenas pelo jeito dele falar. Ele parecia ser próximo de Kyan também e se importava bastante com o mais novo, o que era maravilhoso, pois naquele lugar cheio de pessoas espalhando fofocas falsas e boatos era bom ver que alguém não julgava pelas aparências.

Ele separou-se de si perto do portão, alegando precisar fazer algo na biblioteca e agradecendo por fazer aquilo pelo Frazier.

“Seja gentil com ele, Gina. Sei que Kyan pode ser estourado e mal interpretado às vezes, mas ele é um bom garoto. E eu posso confirmar que ele gosta e admira muito você. Cuide bem dele”, foi o que falou antes de ir, deixando a desenhista com seus pensamentos.

Gina respirou fundo e virou-se para continuar em direção ao endereço indicado, quando foi parada por um trio já há muito conhecido.

— Olha só quem temos aqui — o líder falou, rindo ao olhar Gina dos pés à cabeça e ver que ela havia engolido em seco — Não é tão corajosa sem seu cão de guarda, não é, nerd?

A Williams sentiu o rosto ferver, mas dessa vez não era de vergonha. As palavras de Kyan reverberavam por sua cabeça.

“Sabe por que comecei o boxe, Srta. Gina? Porque estava cansado de esperar alguém se levantar por mim. Eu percebi que se quisesse seguir em frente eu deveria ser meu próprio herói. E eu sei que você tem esse potencial também.”

Sim, Gina tinha sim esse potencial. Ela estava cansada de apenas aceitar de cabeça baixa, estava cansada de ter de esperar alguém para protegê-la. Ela era mais forte do que parecia.

— Saia da minha frente — disse entredentes, ainda sem olhar diretamente nos olhos do jogador.

Johnny riu debochado como sempre.

— O que disse?

— Eu disse — levantou a cabeça, os olhos faiscando em determinação — Saia da minha frente.

Jeffrey e Casper pareciam surpresos com a mudança de atitude da quadrinista que sempre parecia tão dócil e frágil, mas o maior dos três não vacilou. Ele cruzou os braços e franziu as sobrancelhas, comprando a briga da mais baixa.

— Como é que é?

— Quer saber, Johnny? Foda-se! — a Williams explodiu, finalmente olhando nos orbes do outro com lágrimas de raiva em seus olhos — A verdade é que eu tenho pena de você. De todos vocês. Ter que fazer as outras pessoas se sentirem mal para se sentirem bem? Sério? — escarneceu — Suas vidas devem ser muito tristes e vazias.

Os dois de trás estavam boquiabertos com a audácia da menina e o capitão, por sua vez, pensava no que falar.

— Sua... merdinha. Posso arrebentar sua cara em dois tempos e seu bichinho de estimação não vai estar aqui para protegê-la — ameaçou e Gina só conseguiu rir.

— Então, vá! Me bata e mostre para todos o quão covarde você é! — gritou a plenos pulmões e só então o jogador percebeu a quantidade de pessoas ali perto, juntando-se com celulares em mãos, gravando tudo. Ele deu um passo para trás — Agora me deixe ir embora — Gina continuou, empurrando sua passagem por eles — E nem pense em descontar em Kyan ou algo assim. Nós dois sabemos que ele não será tão bonzinho quanto eu.

Dessa vez não só o trio como todos os presentes ficaram calados, ainda estupefatos com o fato da tímida e praticamente invisível garota do departamento de quadrinhos ter tanta força para estapear verbalmente o maior bully da universidade. O silêncio só foi quebrado quando alguém vibrou no meio da multidão, clamando seu nome com orgulho. E Gina não precisava de muito para saber que eram Lisa e Maya, e que logo aquilo viraria notícia nas redes sociais, se é que já não era.

Porém, nada mais importava, ela saiu correndo assim que virou a esquina do campus, quase caindo com seus joelhos bambos pela adrenalina, e seguiu diretamente para o endereço que Theo a havia passado. Lágrimas escorriam por seu rosto, de raiva, de medo do que podia ter acontecido e de felicidade por seu ato impensado que havia surpreendido a todos, principalmente a si mesmo.

Chegou esbaforida ao local, checando seu celular para ver se estava no lugar certo e sorriu quando confirmou. Tentou se recompor rapidamente antes de tocar a campainha da casa e uma jovem senhora atendeu, deixando-a entrar com um sorriso quando explicou quem era e toda a situação.

De repente, percebeu que estava na frente da porta de Kyan, há apenas alguns metros do mais novo e ainda não sabia o que havia acontecido direito aquele dia nem o que falar. Mas tinha que fazer aquilo, tinha que enfrentar aquela conversa do mesmo jeito que enfrentara aqueles três mais cedo. Por isso respirou fundo e abriu a porta.

O quarto estava escuro e parecia vazio, mas quando olhou para a cama avistou a montanha de cobertores por cima do que assumiu ser Kyan, e sorriu.

— Kyan? — chamou-o, chegando perto.

A montanha moveu-se e os cobertores foram baixados somente até os olhos do mais novo, que pareceram arregalados quando percebeu quem estava ali.

— Gina? O que faz aqui? — perguntou, rouco de sono.

— Eu vim te ver, é claro — respondeu simples, como se fosse óbvio — Você não vem há dias, fiquei preocupada — disse sincera, mas Kyan continuou calado. Gina se aproximou mais — Olha...

— Não chega perto! — o mais novo exclamou, fazendo o outro dar um sobressalto e travar na hora.

Seu semblante murchou.

— Está tudo bem? Olha eu sei que você tá chateado e me evitando, mas não precisa de tudo isso. Eu vou entender se você quiser que eu vá embora, mas eu quero pelo menos explicar o que aconteceu porque eu nunca quis te magoar e tudo foi realmente um mal entendido e... — desandou a falar.

Kyan riu entre as cobertas, tossindo um pouco logo em seguida e Gina começou a entender.

— Não é isso — o maior assegurou-a, ainda sorrindo — Eu estou com pneumonia, é por isso que não estou indo na faculdade. Eu não estava te evitando, sua bobinha — explicou, finalmente mostrando seu sorriso de dentes brancos sob a luz parca do abajur.

Os lábios de Gina se abriram em um “o” e ela finalmente começou a rir também da confusão que havia criado. Os dois caíram na gargalhada juntos como não faziam há dias e seus peitos se aqueceram novamente com aquele calorzinho familiar.

— Na verdade, eu queria te pedir desculpas também — Kyan começou, acalmando-se depois de um tempo, sendo seguido pela Williams — Eu não devia ter explodido daquele jeito com você e não te dar chance de falar. A verdade é que eu já estava irritado aquele dia, eu havia chegado mais cedo para conversar com meu professor sobre um texto que estava fazendo, mas ele me desmotivou completamente, basicamente dizendo que estava uma merda e eu fiquei bem mal. Não devia ter descontado em você, entretanto. Desculpe, Gina — explicou, arrependido.

Gina apenas sorriu, sentando-se na beirada da cama mesmo a protestos do mais novo. Ela olhou para baixo, pensando por onde começar a explicar antes de falar.

— Há algumas semanas, meu professor nos passou um trabalho para apresentarmos na exposição no final do semestre. Eu criei um personagem de acordo com o que havia dito a meu amigo que achava atrativo, meu “tipo ideal”, vamos chamar assim — disse, virando-se para o mais novo — No mesmo dia conheci você. E assim como você fiquei perplexa ao ver a semelhança entre os dois, na verdade, achei que estivesse em um daqueles universos doidos de dorama em que o personagem do mangá favorito da protagonista ganha vida — riu consigo mesmo, sendo seguido pelo maior — Aí te conheci melhor e percebi que você era muito mais do que imaginava, e que só me encantava mais a cada dia — confessou com as bochechas rubras escondidas pela escuridão do quarto — Eu nunca te usei, Kyan. Eu nunca fiquei com você só para ter material para o meu trabalho, mas sim porque você foi minha maior inspiração — respirou fundo antes de dizer — Eu me apaixonei por você.

Kyan não sabia mais o que dizer, ele esperava tudo, menos aquilo de Gina. Desde que conheceu a Williams seu pequeno universo ganhou tão mais cores que ele tinha medo de perder uma de seus únicos amigas de verdade quando viu sua história.

Ele era um idiota, meu Deus.

— Eu também — respondeu finalmente, reunindo sua coragem — Eu também gosto de você, Gina. Pra caramba.

Gina não se aguentou, jogou seu corpo para frente e deitou em cima do mais novo, alinhando seu rosto com o dele, e beijou-o por cima do lençol mesmo onde julgou serem seus lábios. “Você acabou de beijar meu queixo”, murmurou o Frazier, enviando a outra em um acesso de riso novamente, antes do próprio maior iniciar o ato e selar a boca dela com o tecido entre eles, como se aquilo fosse de alguma forma impedir a garota de pegar a doença.

Depois daquilo foi só farra, carinhos e risos bobos de histórias de ambos enquanto estiveram separados. Gina contou como fez o trio de androides calar a boca, fazendo o maior enchê-la de selinhos pela coragem e Kyan explicou que havia caído na neve naquele dia enquanto corria furioso para casa. Carma, diria Gina, o que fez e recebeu um ataque de cócegas em retorno.

Os dois adormeceram juntos pouco tempo depois, com a mãe de Kyan apenas indo acordá-los para o jantar e convidar Gina a ficar com eles aquela noite. Ela não recusou.

*****

Três meses depois

Gina arregalou os olhos quando viu seu namorado descer o corredor com um grande buquê de flores em mãos e um sorriso orgulhoso no rosto, cumprimentando a menina com um beijo apaixonado quando parou na sua frente.

— Então, — começou, dando o braço para que a Williams segurasse com a mão livre — o que a nova quadrinista da Epsilon quer jantar hoje? — perguntou, levando-os para fora do campus.

Gina olhou para o celular com o email da editora ainda aberto na tela e sorriu em realização, acenando para seus colegas em suas mesas antes de responder.

— O que quer que o roteirista oficial dela queira — piscou para o Frazier, que riu.

— Esse é o espírito.

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