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Quando a ignorância se torna complacência

Da esquerda para a direita: Kamijou Hiroki e Kusama Nowaki, Takahashi Misaki e Usami Akihiko, e Takatsuki Shinobu e Miyagi You de Junjou Romantica



Yaoi é um gênero de publicações japonesas focadas na relação homoafetiva entre dois homens. O termo, mais conhecido mundialmente como boys love, conta com milhares de fãs de todo o planeta, em sua esmagadora maioria mulheres, e surgiu em meados dos anos 1980 quando houve uma explosão das paródias de mangás famosos publicados como doujinshis, as conhecidas ficções de fãs focadas nos mais diferentes cenários e casais que não se tornaram canon nas histórias originais.

Dentre as centenas de grupos e autores desse gênero, Nakamura Shungiku se destaca por trabalhos de peso nessa indústria, entre eles Junjou Romantica, Hybrid Child e Sekaiichi Hatsukoi, todas obras publicadas em mangás e posteriormente transformadas em animes pelos Studios Deen. Em um primeiro momento, não vemos nada espetacular apenas por essas informações, mas quando se tem Junjou mencionada em 90% das indicações de yaois que você precisa assistir, a mínima reação humana é querer saber o que o torna tão único.

E a resposta é: nada.

Junjou Romantica é uma história que segue três casais diferentes interligados de alguma forma. O primeiro, Romantica, é formado por Takahashi Misaki, um aluno do ensino médio que está se preparando para o vestibular, e Usami Akihiko, um famoso autor, amigo do irmão de Misaki, que se oferece para ajudar o garoto e acaba se apaixonando por ele. O segundo, Egoist, mostra a apaixonada, porém complicada relação entre o professor universitário Kamijou Hiroki, que está constantemente vivendo seu pior momento da vida, e o pediatra Kusama Nowaki, que se apaixona por Hiroki à primeira vista e faria qualquer coisa para vê-lo feliz. O último, Terrorist, é centrado no ricaço aluno de 18 anos Takatsuki Shinobu, que sempre teve tudo o que quis, e sua relação de amor obsessiva com seu professor de literatura Miyagi You, a única coisa que ele não pode ter tão facilmente.

O anime conta com três temporadas, um OVA (Original Video Animation, formato de animação que consiste em um ou mais episódios de anime diretamente lançados no mercado de vídeo, sem exibição prévia em cinema ou televisão) e um especial, além de uma infinidade de mangás e doujinshis que seguem a relação dos seis personagens. Mas não é preciso assistir a mais de uma para entender a linha que não só Junjou, mas todas as histórias de Nakamura seguem: um rapaz novinho encontra um rapaz bem mais velho que ele, um dos dois se apaixona pelo outro e tenta seduzi-lo, os dois fazem sexo (na maioria das vezes não consensual), o outro magicamente se apaixona também e o episódio acaba. Pronto, você acabou de assistir Junjou, Hybrid Child e Hatsukoi em menos de um parágrafo.

Há três diferentes relações dentro do anime e as três conseguem ser igualmente terríveis. A começar que assédio sexual de um homem 10 anos mais velho que você levando à paixão não é apenas incrivelmente perturbador quanto totalmente anticlimático. A moral e autorrespeito do próprio Misaki, que é constantemente abusado das mais diversas formas por seu novo parceiro, Akihiko, é tão inexistente quanto a profundidade emocional e desenvolvimento dos personagens. O romance entre eles é tão puro que Akihiko literalmente joga Misaki dentro de um carro apenas por ele ter ousado conversar com outro rapaz, sem nem entrar no fato dele não deixar Misaki ao menos falar ao telefone com tal rapaz e ainda terminar certificando-se de assediar o pobre garoto no final. Que relacionamento lindo, que magnífico e saudável!

As outras duas relações, ainda que não atinjam a limítrofe de estupro, também contém problemas gigantescos nelas. Egoist, que dura por volta de três ou quatro episódios e abrange uma timeline de aproximadamente seis anos, tem como protagonistas um homem que deixa – novamente – seu bem estar pessoal e moral própria de lado para fazer absolutamente tudo por um parceiro que não liga para nada além de seu sofrimento pessoal e automartirização, indo tão longe a ponto de fugir sem explicações ou sem contato com o outro porque achava que desse jeito o faria querer correr atrás dele. O último relacionamento, Terrorist, conta com apenas dois episódios e por isso tem menores chances de ser completamente idiota, entretanto a autora o consegue do mesmo jeito apenas com o fato dos dois personagens serem aluno e professor e terem 17 anos de diferença. Ah, e é claro, ainda apresentar o característico assédio sexual que faz a série tão bonita.

Em termos de design, você consegue achar que está em um daqueles sonhos loucos onde todos parecem iguais, porque fora a cor dos olhos e dos cabelos todos os personagens de Junjou, assim como os de HC e Hatsukoi, poderiam ser irmãos. É até mesmo raro encontrar uma obra com tanta falta de imaginação e originalidade no design de personagens, sem contar o total descaso e desleixo na animação, que às vezes faz até mesmo com que os protagonistas pareçam ter algum tipo de distorção facial. Outra característica marcante é o fato de você saber exatamente qual o papel do personagem na relação apenas do jeito que são desenhados, o seme (o “dominador”) tem rosto triangular com um queixo retangular estranho e é alto com ombros super largos, e o uke (o “dominado”) é pequeno, com feições demasiadamente infantis e olhos enormes, provavelmente para insistir na posição de dominância.

A trilha sonora também é facilmente esquecível e não adiciona em nada na história, mas o fato de ter sempre algum tipo de música acústica tocando ao fundo enquanto um dos personagens é assediado é de muito mal gosto e parece apenas romantizar a situação ainda mais. Perguntar a alguém em sã consciência como foi a experiência de Junjou é o equivalente a perguntar se ela gostaria de bater a própria cabeça na parede por 4 horas seguidas, e a resposta talvez ainda fosse mais positiva do que sobreviver a 13 episódios desse anime.

Entretanto, agora sabendo a maior parte da gigantesca problemática que existe na série, a grande questão inicial continua: por que Junjou Romantica ainda é tão aclamada e indicada se é de um desgosto tremendo?

Uma breve olhada em Hybrid Child e Sekaiichi Hatsukoi


Takano Masamune e Onodera Ritsu de Sekaiichi Hatsukoi


Como já mencionado anteriormente, além de Junjou Romantica, Nakamura também tem dentro de sua coleção os populares Hybrid Child e Sekaiichi Hatsukoi.

Assim como em Junjou, Sekaiichi Hatsukoi ou World’s Greatest First Love (“O Maior Primeiro Amor do Mundo” em tradução livre), segue a história de três casais diferentes. O principal deles gira em torno de Onodera Ritsu, que cansado dos comentários maldosos de seus colegas por ter um cargo importante na editora de seu pai, decide se demitir e começar uma nova carreira na editora Murakawa, onde para sua surpresa é transferido para o departamento de mangás femininos ao invés da divisão literária. Lá, Ritsu conhece o infame editor chefe Takano Masamune, que logo descobre ter sido seu primeiro amor colegial. Os outros dois casais, bem, ninguém nem lembra quem são visto que o foco dado a eles é tão inexistente quanto a originalidade dos roteiros de Nakamura.

Centrado no mesmo universo de Junjou e sendo considerado um spin-off da série, Hatsukoi segue a mesma linha da primeira com menos sexo desenfreado e um pouco mais de enredo (mínimo). Contudo, a discussão de um abuso psicológico e eventual assédio físico e moral continuam firmes e fortes já que aparentemente esse aspecto não muda em nenhuma das obras da autora.

Da esquerda para a direita: Tsukishima e Kuroda, Yuzu e Seya Ichi, e Hazuki e Izumi Kotarou de Hybrid Child

Já Hybrid Child, surpreendentemente, consegue ser minimamente boa. Sendo um OVA com apenas quatro capítulos, a série fala sobre as crianças híbridas, seres criados pelo talentoso artesão Kuroda que não são nem bem humanos nem bem bonecos, porém que contém sentimentos e consciência e requerem amor para crescer. Novamente, a série se foca na história de três casais (Nakamura parece gostar bastante dessa fórmula), sendo a dos dois primeiros centrada na relação entre dois mestres e suas crianças híbridas, e o terceiro no próprio criador desses seres e o que o levou a gerar o primeiro deles.

Sendo um anime yaoi e sequenciando os outros dois trabalhos citados, é uma surpresa não totalmente má recebida o cenário obscuro da trama, passando-se no período histórico do final do século IXX, onde os samurais estavam sendo dizimados, e isso incluía o próprio Kuroda. A problemática que persegue todas as séries continua no ar em HC, dessa vez se focando ainda mais na romantização da pedofilia, e questões como a falta de criatividade nos designs dos personagens também não são corrigidas. Entretanto, temos realmente um enredo interessante e trabalhado minimamente bem dessa vez, como a premissa de que as crianças híbridas têm um tempo de vida diferente dos humanos; e uma trilha sonora de peso que realmente adiciona à história.

Mas voltemos à pergunta inicial: se as obras de Nakamura são tão ruins e problemáticas, por que as pessoas gostam tanto?

Por que as mulheres gostam de yaoi?




Segundo FreeNightFalls, usuário do site My Anime List e autor do artigo Top 15 Best Yaoi Anime: Why is Boys Love Beloved By Girls?” (“Top 15 Melhores Animes Yaoi: Por que Boys Love é tão amado por garotas?” na tradução livre), “Um dos aspectos mais criticados dos animes e mangás yaoi é que não demonstra a realidade da homofobia na sociedade japonesa, mas apenas foca em entretenimento irrealista. Contudo, criar um mundo yaoi dá um certo poder às autoras femininas, e também permite que leitoras e espectadoras femininas adentrem um mundo proibido do erotismo que elas são incapazes de experienciar ou reconhecer por si mesmas na vida real”.

Apesar de nem todos os yaoi tratarem-se ou mostrarem essa parte do sexo e do erotismo, ainda é um assunto muito popular porque está dentro do tabu gerado pelo preconceito dos japoneses contra as relações homoafetivas. Você certamente já ouviu falar que tudo o que é proibido é mais gostoso, é como de praxe que tudo o que nos atiça a curiosidade e o que não podemos ter seja ansiado pelo ser humano. E talvez FreeNightFalls esteja correto nesse aspecto ao dizer ser interessante aos olhos femininos pelo “apelo dos animes e mangás yaoi poderem ser interpretados menos como uma necessidade de equidade, e mais como uma excitação de ter um corpo masculino passivo e inerte aberto para o olhar e prazer feminino (...) porque nesse recluso mundo de amor entre meninos, os homens são aqueles que são vulneráveis”.

Isso cria uma sensação de empoderamento, mas ao mesmo tempo uma preocupação gigantesca. Colocando Nakamura como exemplo, temos uma mulher de 40 anos hétero e basicamente sem contato real com a comunidade LGBT+ desenhando uma relação tóxica fantasiada de romance para um público essencialmente com quase as mesmas características que a autora.

Porém, até onde conseguimos defender esse comportamento? Podemos usar essa carta para talvez aliviar um pouco o peso das costas dessas fujoshis (“garota podre” literalmente, como são chamadas as fãs obcecadas por BL) japonesas. Mas o que faz as pessoas aqui no ocidente, onde temos uma discussão mais aberta sobre a questão da homofobia etc., terem até mesmo sites de peso na comunidade dos animes como o Bunka Pop recomendando essas obras problemáticas?

Na minha teoria, além da porcentagem baixíssima de conteúdo que temos desse gênero comparada às outras categorias de anime e mangá, há uma estigmatização de que, justamente por não termos muito, o que tivermos vai ser ruim, já que novamente a maioria dos autores dessas obras não tem exata experiência ou cultura para falar dessa comunidade. Porém, não temos também experiência sobre lutar com dragões e travar guerras de magia e mesmo assim temos livros de fantasia incríveis.

O grande preconceito contra as fujoshis surge (muitas vezes com razão) na comunidade otaku (fãs devotos da cultura de anime/mangá japonês) de dizerem que “todas são apenas garotas de 13 anos que querem ver dois homens se pegando” por termos as mesmas pessoas que se expõe contra o assédio e a misoginia todo dia assistindo peças como Junjou e achando a coisa mais maravilhosa do mundo. Mas em um mundo onde existe Yuri!!! On Ice, Given e Doukyuusei, é difícil saber se estamos lidando apenas com ignorância ou começa a ser complacência.

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